Catrevagens do medo
Comecei a ler Victor Heringer finalmente depois de tantos anos esperando o momento certo para entender que não existe poema certo e também tempo. Esse mês estive concluindo minha dissertação de mestrado e meu corpo não tankou, paralisou, imobilizou, precisei de cuidados e ficar sem pensar alguns dias. Acontece que não é fácil ficar sem pensar quando tudo o que você faz da vida para ganhar dinheiro é pensar pensamentos e pensá-los melhor, mais apurado, mais preciso, mais verdadeiro, mais bonito, mais elegante porque você precisa escrevê-los ou filmá-los ou transformá-los em perguntas lógicas que outras pessoas provavelmente mais ocupadas ainda precisam responder para você.
Eu acabei de ler a primeira parte de Noturno para Astronautas, poema de Victor Heringer. E também As Virtudes da Imobilidade: Em que grau de imobilidade eu ficaria plenamente satisfeito./ Não confinado a uma cama ou cadeira de rodas./ Não preso a uma cela de sete metros quadrados./ Há poucos meses um médico achou que eu poderia estar muito doente / então fiz exames e descobri que não/ estou tão doente. / estou só envelhecendo e medianamente satisfeito./ Depois de perambular muito tendo bordado SOLVITUR AMBULANDO no forro de todas as minhas botas talvez a satisfação esteja na imobilidade./
[…]
Uma cristaleira de café vive mais do
que um homem médio
sobretudo hoje, quando os cafés
estão nas mãos dos hipsters
[…]
A cristaleira de café vive plenamente satisfeita
de vez em quando ainda a mudam de lugar
para variar a paisagem.
Tiram o pó.
Meu cachorro foi tirar raio-x da pata traseira
e ficou tão quietinho que o técnico deu R$ 100 de desconto.
Há certa virtude na imobilidade.
[…]
Todo cambia, cantava Violeta Parra
e eu amo Violeta há muitos anos.
E o amor é uma rua de mão única
por isso dá para amar poetas mortos
e cidades (Brodsky diz).
Quanto maior o grau de imobilidade
mais fácil ser amado
(pergunto eu)
Temos inveja das coisas mais imóveis que nós.”
Achei tão lindo, jesus, que escritor bonito (quem me falou dele foi felipe andré). Aí me deu vontade de escrever aqui de novo, depois de tanto tempo.
Estou ficando bem emocionada de estar terminando o mestrado porque quando comecei ele estávamos na imobilidade pandêmica de 2020 que não fez sobrar um ser humano sem mudança. Engraçado que se as coisas ficam paradas obrigatoriamente por fora, algum movimento interno precisa acontecer pra dar conta. E aí, na minha paralisia toda, eu vi o lançamento ao vivo desse clipe aqui, sentada no escritório do meu trabalho. Se você abrir esse vídeo no YouTube e clicar no botão de replay do chat ao vivo, você não vai me ver lá só porque não comentei nada (eu era apenas uma participante invisível lendo os comentários), mas eu estou ali em praticamente todos os comentários apaixonados.
Tinha uma contagem regressiva, milhares de pessoas escrevendo sobre o quanto estavam ansiosas para assistir ao novo clipe de Zé Vaqueiro. Era uma versão atualizada do que a gente tinha quando a MTV estreava um clipe novo na programação — só que agora a gente pode interagir e comentar absolutamente tudo o que a gente tá sentindo e vendo. Eu fiquei bastante emocionada de testemunhar isso dentro do cenário do forró, uma ansiedade, uma excitação de tanta gente compartilhada por mim. Eu tava entendendo o tamanho de Zé Vaqueiro surgindo num contexto em que dois tipos de opinião são mais privilegiados: os que acreditam numa boba ideia de extinção do forró porque está “cada vez mais se distanciando das raízes” e a ideia que tudo que tende ao pop, ou que claramente busca fazer sucesso popular, enfraquece o “gênero original, puro”.
Depois de ficar embasbacada com esse clipe porque, claro, sou obcecada em comer cheirar e ver videoclipe sempre que posso, eu fui falar com meu amigo Daniel e ele olhou bem nos meus olhos por meio de 10 mensagens de whatsapp e disse: amiga eu acho que tem uma pesquisa aí, hein?? e enviou aquele emoji de olhos arregalados. Eu já estava de olho em Zé Vaqueiro porque me apaixonei pelo clipe e som de Volta Comigo BB, aquele mega inspirado em sei lá The Weekend
E aí eu fui desenvolvendo as coisas e cheguei em Lucy Alves, mas na real minha pesquisa, atualmente, é sobre forró e sobre como a sanfona é um instrumento generificado, uma tecnologia que o sanfoneiro acopla em seu próprio corpo, que o pop é uma via de acesso ao forró assim como também um desvio do forró que ao mesmo tempo que rompe, engrandece os limites desse forró. Aí eu passo pela sanfona de Luiz Gonzaga, pela sanfona de Dominguinhos, até chegar na sanfona de Lucy Alves… tudo isso pra mostrar que na real tudo sempre foi meio pop desde o começo no final das contas e a vida é um ciclo sem fim de mudanças e misturas, começos, meios e fins.
Claro que esse mói de palavra aí vem de 3 anos extremamente desconfortáveis de pesquisa, trabalho, emprego, trabalho, emprego sem bolsa, pesquisa sem salário, neoliberalismo, coração partido de adolescente que tá tentando virar jovem adulta que tá tentando virar adulta sem querer ir direto pra velhice apesar de ansiar ser uma anciã com um cajado, bolo de cenoura, plantas, netos, chás, bordados, gatos, cachorros, passeios, comidas, filmes, livros, pessoas, amigos, amores, saudades, dores, um engasgo aqui outro ali, cuidados, médicos, plano de saúde, cadeira de vovô e de balanço, aposentadoria digna e várias outras coisas que provavelmente só acontecem com herdeiros. Era pra ter sido 2 anos, mas transformei em 3 porque não dei conta. Nesse mesmo período me afastei de amigos queridos, me aproximei de outros, mudei, mudaram, me senti sozinha triste, me senti sozinha feliz, rompi alguns relacionamentos, sofro até hoje por alguns deles. Fico feliz até hoje por alguns deles. Mas no geral não me arrependo de nada, só tô exausta pra kct. Enfim uma vida absolutamente banal de uma mulher cis classe média não branca que mora numa capital brasileira que precisa trabalhar e ainda consegue sonhar e manter desejos em uma cidade que não é a dela de origem.
Mas como eu tava dizendo… No momento em que eu vi esse clipe de Zé Vaqueiro eu percebi o tanto de coisa que o forró mexia em mim e todo mundo já deve tá irritado de me ouvir falar disso. Durante a pandemia, eu tive a sorte e azar de sentir uma angústia, inveja, ciúme, rancor, ódio, raiva, terror, medo e todos os piores sentimentos que a gente sente quando está insatisfeito com quem se é, que comecei a descontar em tudo. Aí finalmente alguma coisa me olhou de volta e eu vi que era tudo ligado ao forró que me tirava desse lugar e me trazia de volta pra mim e pra quem eu achava que eu era naquele momento. Ia dizer que tinha sido bonito isso, mas não foi. Foi horroroso, ansiogênico, deprimente, mas muito especial. kkkkkkk
E aí eu passei no mestrado da UFPE com muita emoção pq no primeiro listão teve um erro e alguns CPFs aprovados ficaram de fora. Claro que o meu tava junto. Fiquei derrotada por 2 dias, sabia que pesquisa nunca tinha sido pra mim, não nasci com capital cultural desse jeito que as pessoas que pesquisam deveriam nascer na minha cabeça e na da maioria de nós (tá tudo bem galera vamos aceitar que somos preconceituosos e arrogantes também!!!). Aí depois corrigiram e eu fui aprovada, mas o fantasminha ainda fica né.
Quando eu enviei minha dissertação pra ser corrigida pelo meu orientador, mesmo ainda sem a metodologia, é meio como se a ficha ainda não tivesse caído pq qnd vc começa a entender o que é pesquisar, o processo acaba e você sente que não fez foi nada. Só que fez. Tá lá umas 100 páginas de falação de forró e uma estafa.
Minha pesquisa se chama “Sanfona pop: reiterações e rupturas performáticas no forró” e tava pensando em mudar rupturas pra fissuras. Escrevi um parágrafo sobre isso, mas um amigo desaconselhou de colocar porque ele sabe que eu adoro uma fuga de tema <3 ele era assim:
Porém, aqui, abro um breve parêntesis dessa continuidade para sustentar uma fissura na escrita, já que este trabalho é, antes de tudo (e justamente), sobre os vestígios que conseguimos observar pelas fissuras – do forró, dos gêneros, das palavras, dos sentidos, dos corpos, performances e instrumentos. Na ilha de edição, como nos referimos ao espaço físico e técnico em que editamos os projetos audiovisuais, ouvi a seguinte expressão: às vezes, deus edita. O contexto foi o momento específico em que precisamos trocar uma música que já estava na linha do tempo por outra, seja por qual motivo for, e milagrosamente este novo som se encaixa no tempo exato entre o sobe som e a fala, sincronizando a letra da música com o off da repórter e a seleção de imagens. Escrevendo esta dissertação, eu percebi que deus também pesquisa. Pois quando estamos febris no sintoma misto de excitação e angústia, que permeia a busca cuja bússola é fabricada pelo buscante na própria jornada, sempre surge a peça que falta do quebra cabeça, geralmente entre as páginas de um livro esquecido na estante desde seu primeiro ano de faculdade. Você o abre, o cheiro de guardado te elogia com uma unidade espirro. Dois e você encontra este trecho abrindo o clássico da Comunicação Social, “O Meio é a Massagem", de Marshall McLuhan e Quentin Fiori (1967), produzido por Jerome Argel: “Todos os meios são extensão de alguma faculdade humana – psíquica ou física. A roda é uma extensão do pé. O livro é uma extensão do olho. A roupa, uma extensão da pele. A circuitação eletrônica, uma extensão do sistema nervoso central”. E a sanfona, você arremata, a extensão da sanfoneira. Por isto é dada como justa a importância de olhar a fissura bem de perto, bem nos olhos, até que ela te escute de volta.
Com mais frequência do que eu achava, acontece comigo de acordar com uma palavra que sonhei. As destas semanas foram catrevagem, que significa uma grande quantidade de objetos, e medo, porque tenho tido muitos pesadelos ultimamente. Quando Victor Heringer escreveu Noturno para Astronautas, ele dedicou para o irmão, que ficou encarregado de editar coisas póstumas.
“As crianças crescem
e visitando planetários
vão diminuindo
diminuindo
até que ficam do tamanho de um
adulto.
Diâmetro da Via Láctea: 150 000 anos-luz
Diâmetro do Universo: 98 000 000 000 anos-luz
A boca da xicrinha de café tem 5 cm de diâmetro.
Um olho humano pera 7.5g
é noite no Rio de Janeiro.”
E aí eu me reservei um espaço no planeta terra deste mês de junho, que amo tanto, que criou quem eu sou praticamente, por causa do São João, pra escrever esse texto inteiro justificando o fato curioso que a mesma coisa que te tira da paralisia, da imobilização de uma pandemia, tem o mesmo potencial de te paralisar novamente. O desejo, o interesse, a paixão que o forró me mobilizou certa vez, esse mês me paralisou valendo, depois de tantas horas sem descanso entre pesquisa e trabalho e principalmente minha falta de cuidado e zelo com meu corpitcho que agora tem 32 anos e num tanka mais mta coisa. Me dei de presente a coragem de postar isso aqui, esse próximo poema bobo simples judiado de referência, mas que me deu muita satisfação de ser escrito. Estou finalmente me entendendo de novo.
As catrevagens do medo
Forró é a tecnologia que eu uso
para me distrair
do fardo de estar neste século
do tamanho de um ser humano
Que olha as galáxias todas
A evolução paleolítica
e os neandertais
e as inteligências artificiais
e se pergunta
Do que estamos tentando fugir aqui
que já não seja o nosso destino?
que já não esteja no nosso umbigo?
Aí é isso. Um abraço em cada um de vcs, queridas pessoas que me acompanham por aqui! Estou bem e estarei cada vez mais tranquila porque isso tudo é só uma fase doida mesmo. Espero que vocês estejam bem também e curtindo esse são joão lindo que deus nos deu. só a festa salvaaaaaaaa (não revisei nada e vou postar assim chauuuuu)